VIVER TERESINA

É um espaço destinado a colher informações e a divulgar a poesia contemporânea brasileira, a tradição poética nacional e a vanguarda internacional. Historiadores e ensaístas poderão publicar também textos sobre a história do Brasil. O nome Viver Teresina é uma homenagem a um movimento literário criado pelo escritor Menezes y Morais nos anos 70 em Teresina.

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segunda-feira, 28 de junho de 2010

QUEM TEM MEDO DE CAPITU?


Franzino, mulato, gago, epiléptico, vendedor de pirulito. O leitor pode imaginar que se trata de uma das sete milhões de crianças abandonadas do Brasil. Ledo engano. Estou falando do escritor Joaquim Maria Machado de Assis, nascido no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro em 1839, e falecido na mesma cidade em 1908.

A infância foi marcada pela pobreza. Perdeu a mãe quando tinha dez anos, sendo criado pela segunda mulher de seu pai, a lavadeira Maria Inês. O genitor era um simples pintor de paredes.

Machado de Assis foi sacristão na Igreja da Lampadosa. Aprendeu francês com o padeiro Gallot. Depois, foi trabalhar como revisor e caixeiro na Imprensa Nacional, à época dirigida pelo escritor Manuel Antônio de Almeida, autor da imortal obra Memórias de um Sargento de Milícias, hoje um clássico na literatura de Língua Portuguesa.

Em 1869 casou-se com a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais, senhora de fino trato, rica e culta, que introduziu verticalmente o futuro inventor do romance nacional, à leitura dos escritores renomados da literatura portuguesa e inglesa. O casamento de Machado com Carolina durou 35 anos, interrompido pela morte da esposa em 1904, no mesmo ano em que publicava o monumental romance Esaú e Jacó.

Machado continua sendo o maior escritor brasileiro, mesmo depois de 100 anos de seu falecimento comemorado em todo país em 2008. Aos 15 anos publicara seu primeiro poema, Ela, no jornal A Marmota Fluminense. Os críticos costumam dizer que se não fosse a segunda parte de sua obra romancística, que compreende Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1900), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), ele não teria alcançado o prestígio de ter sido reconhecido ainda em vida como a maior expressão da Literatura Brasileira.

108 anos depois de sua publicação, Dom Casmurro continua sendo o seu romance mais emblemático. Eis um pequeno resumo: Bentinho, personagem principal, narra a sua história com Capitu, sua amiga de infância e primeira namorada, posteriormente esposa. Capitu tem uma amiga, Sancha. Bentinho vai para o seminário cumprir uma promessa da mãe, mesmo não tendo vocação e sentindo-se cada vez mais atraído por Capitu. No seminário ele conhece Escobar e os dois ficam muito amigos. Ambos terminam por abandonar o sacerdócio. Bentinho casa-se com Capitu e Escobar com Sancha.

Para alegria do casal, Capitu fica grávida nascendo-lhe Ezequiel. Uma tragédia, porém, vem para quebrar a alegria dos dois casais: Escobar morre afogado no mar. No velório, Bentinho nota que Capitu sofre mais do que Sancha, embora use o artifício do disfarçe. Surgem então no coração de Bentinho os ciúmes, as dúvidas sobre um possível relacionamento entre Capitu e Escobar. Observando o filho, Bentinho vê semelhanças entre o filho e o amigo morto. Sofre calado, pensa em matar os dois, e depois se matar.

Quando a angústia guardada chega ao ponto máximo, fala com a esposa sobre as suas amargas apreensões. Capitu ouve a acusação, mas não nega nem confirma. Capitu vai para a Europa e Bentinho fica sozinho, amargando a solidão, os ciúmes e a descrença no ser humano. Capitu morre algum tempo depois. Ezequiel volta, já moço, com a idéia de fazer uma expedição à Grécia, ao Egito e à Palestina. Bentinho não somente o incentiva como também o ajuda financeiramente. Nova tragédia:Ezequiel morre durante a expedição. A história vai sendo contada até o fim por um narrado já velho, que resolve atar as pontas da vida, revivendo a infância, a adolescência e o fracassado casamento com uma mulher supostamente infiel. Antes de pensar num caso amoroso entre Capitu e Escobar, creio eu que Bentinho era verdadeiramente apaixonado por Escobar e não propriamente por Capitu! É um exemplo de veadagem implícita pouco estudada pelos críticos do Brasil e do exterior.

Esta história simples de uma traição (pelo menos na cabeça de Bentinho) revela, no entanto, vários aspectos da condição humana: o humor, a crítica mordaz aos costumes (Machado era um excelente observador do cotidiano no que ele tem de mais profundo e banal) e a vida da sociedade brasileira do II Reinado, marcada por uma microfísica familiar baseada na tradição católica brasileira. O universo narrado por Bentinho, historicamente, compreende o período entre 1857, quando de fato começa a narrativa, e os primeiros acontecimentos pertinentes à fase posterior à Proclamação da República, para muitos um golpe de Estado ao qual o povo brasileiro não teve qualquer participação. Para quem não sabe, Machado, um convicto monarquista, conservava o retrato de D. Pedro II em seu gabinete no ministério onde trabalhava, mesmo depois do dia 15 de novembro de 1889!

O ambiente narrado pelo Bruxo do Cosme Velho se instaura marcado por uma profunda contradição: de um lado, um certo liberalismo político, e do outro, a presença de uma sociedade injusta e desigual, fortemente selada por uma escravidão secular. Em 1850, o Brasil contava com cerca de 2,5 (outros pesquisadores afirmam que o número era bem maior, visto não ter um censo seguro) milhões de cativos que amargavam um trabalho pesado no campo e na cidade.Assim, podia-se ver na Corte carruagens reluzentes, festas monumentais e uma corrida desenfreada pela compra de ações, que acabou por elevar o número de ricos para patamares consideráveis (como é o caso do personagem Santos, do romance Esaú e Jacó), enquanto a gentalha perambulava pelas ruas sujas e tortas do Rio de Janeiro.

A classe média brasileira, o empreguismo à solta, os novos métodos e técnicas para a agricultura, o crescimento das cidades, o desenvolvimento do comércio e o aparecimento de profissionais liberais são frutos do II Reinado. O Barão de Mauá, o primeiro grande capitalista brasileiro, engendrou a fundição de ferro, a construção naval, a criação de transportes fluviais, a iluminação pública, o que o levou a ser considerado no século XX o criador da indústria brasileira.

É desse caldeirão social que Machado de Assis se alimenta e fomenta os seus personagens. Dom Casmurro é o maior intérprete de sua própria agonia e dos espasmos finais do II Reinado. O escritor se coloca como a interface de um período que chegava ao fim, e de outro que começava, a República, que trazia em seu bojo as contradições incrivelmente ainda não completamente saneadas, mesmo depois de mais um século de seu advento.

No século XIX, como ainda hoje se perpetua no século XXI, as decisões vinham sempre de cima. No caso do II Reinado, o comando originava-se do Poder Moderador, representado por D. Pedro II. Este escolhia o presidente do Conselho de Ministros que, por seu turno, convocava as eleições, em geral, fraudulentas (como foram quase todas as eleições no período republicano), para conduzir os donos da terra ou os seus representantes ao poder legislativo (a Câmara dos Deputados), já que os senadores não eram eleitos, mas elevados à cadeira senatorial por escolha pessoal do velho monarca.

Machado é a ponte entre o Brasil agrário e urbano, reacionário e moderno. Se escrevesse em inglês seria mais famoso do que Shakespeare. Por não ser uma língua imperialista, o Português amarga a eterna desventura de viver na solidão em relação ao concerto das grandes Nações. Ainda não ganhamos nenhum Nobel de Literatura. Mas, para um país como o nosso que, em 1890 , tinha uma população calculada em 10 milhões de habitantes, da qual 84% não sabia ler nem escrever, ter um Machado era uma redenção e uma glória, pois ele foi, na minha modesta opinião, o verdadeiro criador do gosto pela leitura no Brasil. Que o diga José de Alencar.

Chico Castro

*Originalmente este artigo foi publicado no jornal Diário do Povo, em 1988 para comemorar os 80 anos de morte da Machado de Assis e republicado no mesmo jornal, em 2008 para comemorar o centenário de morte do autor de Dom Casmurro.

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