VIVER TERESINA

É um espaço destinado a colher informações e a divulgar a poesia contemporânea brasileira, a tradição poética nacional e a vanguarda internacional. Historiadores e ensaístas poderão publicar também textos sobre a história do Brasil. O nome Viver Teresina é uma homenagem a um movimento literário criado pelo escritor Menezes y Morais nos anos 70 em Teresina.

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quinta-feira, 17 de junho de 2010

A TOCAIA DA JUSTIÇA

   Capa do livro Parabélum

Cadeia de Barras                                                           Rua Grande                            
                                                                                                     Namorada de Gregorio
                                                                                                                     
Eneas e Socorro

Parabélum é um dos livros mais instigantes que li nos últimos tempos. A obra de Eneas Barros é uma espécie de romance-reportagem, modalidade artística que se transformou em gênero literário nos anos 70, que se realiza no escritor piauiense com uma superioridade estética encontrada de igual jaez entre os ficcionistas brasileiros mais importantes do século passado, Ignácio Loyola Brandão [Zero], Antonio Callado, [Quarup] José Louzeiro [Araceli, meu Amor], trabalhos seminais neste tipo de literatura, agora se juntam à história de um crime que abalou Teresina em 1927, retratado pelo autor com um estilo muito próprio dos grandes mestres da arte de narrar.

Segundo os mais afamados teóricos da literatura, o que hipnotiza o leitor do romance-reportagem, é que ele traz ao mesmo tempo os ingredientes do romance de ficção misturados com a informação, o opinativo e o interpretativo. Ressalte-se ainda que, por não ser ficção propriamente dita, nem ser reportagem pura e simplesmente, mas uma ruptura de fronteiras entre os dois gêneros e uma aglutinação simultânea de algo que a princípio parece tão irreconciliável, o livro de Eneas Barros alcança de maneira magistral a trilha da excelente narrativa, pois que a história trágica de um homem acaba por se mover da condição pessoal para o palco da natureza humana no que esta tem de divino e desalentador.

Não reside justamente nessa bissetriz entre o real e o irreal o mérito de quem escreve seja ficcionista ou um simples contador de histórias? Da minha parte não há nenhuma dúvida. Baseando-se em registros oficiais, em notícias de jornais e nos anais dos inquéritos policiais, o autor customiza a massa informacional com momentos de rara astúcia literária, em algumas circunstâncias deixando o leitor sem saber onde começa a ficção e termina a realidade, ou onde esta se inicia e em que lugar se extingue a chama daquela. Estranho malabarismo que não deixa cair a ficha nem do mundo da invenção nem da cena do plausível. Admiravelmente, a ação vai sendo desenvolvida por um arguto observador da realidade em cuja lanterna mágica aparece da escuridão a imagem de uma sociedade, no caso a teresinense, marcada desde o princípio pela ótica das elites que sempre viu com desdém do topo do seu egoísmo a miséria de um povo que ainda não encontrou o seu verdadeiro lugar ao sol.

O que é o real? Pelo livro ficamos sabendo que o motorista Gregório Pereira dos Santos foi assassinado pelo tenente Florentino de Araújo Cardoso, da Polícia Militar do Piauí, no dia 17 de outubro de 1927, às margens do rio Poty, em Teresina, crime que abalou toda a sociedade local pela frieza e pela barbaridade com que o delito foi cometido por uma autoridade que deveria manter a integridade física do prisioneiro. Qual foi a motivação do crime? A Diocese marcou a visita de Dom Severino Vieira de Mello, bispo do Piauí, à cidade de Barras para o dia 14 de outubro, uma sexta-feira, de 1927. A comitiva foi esperar o religioso fora do perímetro urbano, já que o atraso do mesmo deixara todos impacientes na cidade. Na volta, a comitiva [o motorista Gregório ao volante, o padre Lindolfo Uchôa, o juiz de Direito Arimateía Tito e o coronel Otávio de Castro Melo aboletados em um Ford bigode] voltou para Barras com um certo ar de desilusão. No entanto, muita gente achava que Dom Severino estava entre os passageiros. Ledo engano. O veículo, ao passar à porta da casa de Florentino atropelou o menino Manoel [que saíra de casa em disparada, talvez alvoroçado como toda população, face a tão ilustre presença na acanhada cidade do interior piauiense] de quatro anos, filho do tenente que era também o delegado da cidade. Todos os ocupantes foram unânimes em afirmar que não houve qualquer culpa do motorista, inclusive o juiz de Direito que argumentou que o acidente havia sido uma fatalidade do destino.

Desesperado, Florentino mandou Gregório para a cadeia pública. Espancado, violentado, amarrado, sem poder comer nem beber, várias testemunhas puderam comprovar os maus-tratos ao motorista. Diante de tanta ilegalidade, o juiz de Direito mandou soltar o preso por meio de um habeas-corpus. Mas no domingo pelo fim da tarde, não resistindo os graves ferimentos de que fora vítima, Manoel Cardoso de Vasconcelos veio a falecer para grande angústia do pai e comoção de toda a cidade. Antes da meia-noite, Florentino alugou um caminhão a fim de fazer sua mudança para Teresina. No veículo vieram o tenente, a esposa Guiomar, Severão [um matador profissional] e o motorista Gregório. Ao amanhecer da segunda-feira, dia 17 de outubro, como já foi dito, à esquerda do rio Poty, Gregório foi atingido por um tiro fatal disparado pela Parabélum do tenente Florentino. Caía por terra um homem simples que o povo transformou com a passagem dos anos num verdadeiro mártir, um santo milagreiro para muitos, um mito perpetuado na memória coletiva dos teresinenses. Se Florentino tivesse lido o romance Quincas Borba, saberia pela voz ácida do personagem de Machado de Assis, que “não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra...”

O que o real? Florentino foi preso confinado na antiga prisão de Teresina que existia no Campo de Mártir, atualmente um estacionamento nas imediações do Ginásio de Esportes o Verdão. Mantido numa cela com todas as regalias que lhe convinha, o assassino confesso de Gregório terminou evadindo-se da prisão com a conveniência de seus pares de farda, para refugiar-se da lei durante um largo período de tempo, em primeiro lugar no interior do Piauí, depois no Ceará e, por fim, em Salvador, onde acabou sendo preso e recambiado para Teresina. Enfrentando um júri popular, foi condenado a 19 anos de prisão e três meses de reclusão. No segundo julgamento e no seguinte alcançou a tão almejada liberdade, terminando os seus dias em Crateús, no interior cearense. Mas o que mesmo o real? Dizem que além de ter perdido o filho, o tenente Florentino, fora informado antes de cometer o brutal assassinato, que a sua mulher Guiomar era amante do motorista Gregório, e que, em função do acidente em perdera a vida o filho amado, ela abortara no quintal de casa. Teria sido essa revelação a causa maior de Florentino ter disparado o tiro fatal que ceifou a vida de Gregório? O tenente poderia, de fato, suportar a idéia de ter sido traído numa situação em que o amante era um negro? É verdade mesmo que Guiomar traíra o esposo ou não seria mais uma artimanha do advogado de defesa [Cristino Castelo Branco, que vem a ser o pai do famoso Carlos Castello Branco, o maior jornalista político do Brasil de todos os tempos], para livrar o acusado das barras da prisão? Será?

A dúvida é a melhor arma que um escritor se utiliza no campo minado da verossimilhança. Por alguns instantes, me lembrei daquela passagem saborosa do romance Iaiá Garcia, do Velho Machado. O estranho e recluso personagem Luís Garcia descrito como um cético voraz “porque nenhuma vocação apostólica o incitava a abrir a outros a porta do seu refúgio”, num diálogo com Valéria que queria a todo custo que o filho se tornasse um herói na Guerra do Paraguai, percebendo que a mãe queria angariar algum benefício com o suposto “ato patriótico”, saiu-se com uma frase de arrasar quarteirão:” O coração humano é a região do inesperado”. Inesperado pode ter sido o coração de Florentino ao se sentir traído, mas ainda espetacularmente inesperado foi mesmo a absolvição do acusado pelo juiz que testemunhara o acidente que matara o menino Manoel, inclusive tendo este declarado antes e repetidas vezes depois, que tudo não passara de uma trágica ação do destino. Coincidência ou não, a arma do crime fora um presente que o governador de então do Piauí, o Dr. Mathias Olímpio de Mello dera ao tenente Florentino, após a nomeação do militar para exercer o cargo de delegado da cidade de Barras. Mera coincidência. Mas quem pode verdadeiramente imaginar uma separação entre o que é ficção e o que realidade? Quem pode adivinhar o que pode acontecer amanhã, inclusive comigo que nesta manhã fria de Brasília, procuro cumprir a promessa de escrever um artigo sobre esse fabuloso trabalho de Eneas Barros?

O que é o irreal? O irreal me parece é aquilo que vive envolto no mistério. Sendo por vezes pura abstração, um escritor inteligente consegue transformá-lo num espelho onde se reflete o espírito do seu tempo ou a atmosfera do espírito em que a ação transcorre. Diferentemente da realidade, a ficção é um convite à liberdade e uma chance que um autor permite à alegria da reflexão. Como diz o poeta grego Hesíodo em seu livro O trabalho e os Dias, “o oculto retêm os deuses o vital para os homens”. Eneas Barros oculta aos pobres leitores o essencial para os nossos olhos mundanos. O que um crítico pode esperar do inesperado que surge numa página onde as letras, as frases, as orações vão surgindo e ocupando o deserto branco de um folha de papel? Ou tela desnudada de um computador aberto, um sol para a introspecção do mundo? Cada narrativa é uma ocasião para sonhar. O que quero dizer é que o chamado mundo real está mais cheio de simulacros que o dia-a-dia do teatro de espelhos deste mundo. Terá razão o sábio grego Heráclito, citado por Nietzsche, ao falar pela boca do filósofo alemão, em o Crepúsculo dos Deuses, que “o ser é uma ficção vazia.”?

Para que mais irreal do que a fuga de Florentino arquitetada por um sargento da PM do Piauí, os passeios fora da prisão para fazer ninguém sabe o quê, a figura do pistoleiro Severão, homem de confiança do tenente assassino, pago por políticos para matar seus desafetos, o descumprimento por parte do oficial da PM de uma ordem judicial expedida por um magistrado, os pedidos de cura feitos por devotos a Gregório [no caso, a romaria que ainda hoje se faz em Teresina no memorial dedicado ao mártir, e em especial, no Dia de Finados], a absolvição do réu no terceiro julgamento altamente suspeito, a volta dele a Barras 28 anos depois de ser considerado inocente em que, segundo Enéas Barros, “perambulou pela pelas ruas como um desconhecido”. É tudo muito surreal. O que existe de mais irreal do que a realidade que nos cerca? Em que lugar do Paraíso termina a ficção e começa a realidade. Ou que lugar do passado se pode resgatar o presente, para vislumbrar no futuro uma humanidade sem futuro, um mundo sem sonho, sem fantasia? Qual o papel de um escritor nos tempos atuais? Lembro-me agora daquela famosa passagem no livro O Triste Fim de Policarpo Quaresma. Quaresma, o incrível personagem criado pela mente exuberante de Lima Barreto, ao querer convencer Floriano de que o sonho é maior do que a realidade, ouviu da boca do personagem representado na figura exponencial do Marechal de Ferro: “Quaresma, você é um visionário”. Cá com meus botões, tomo a ousadia de repetir a célebre frase a Enéas Barros: “meu caro amigo, você também é um visionário. Mais um da moderna ficção brasileira. Que outros gregórios sejam ressuscitados pela sua engenhosa imaginação. Que venham mais amélias, ou outras camélias. A literatura piauiense, pobre em ficcionistas, [à exceção de O. Rego de Carvalho e de Assis Brasil], agradece penhorada a sua mais completa e exitosa contribuição.

Chico Castro/Brasília/junho de 2010.

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